Fundação E(c)llipse, o BPP nas artes<br>- Negociatas & Figurões

Manuel Augusto Araújo
Ao ler o que a comunicação social vai publicando sobre o BPP, é bastante curioso registar o que é dito, como é dito, quando é dito. Não se enquadra nos critérios jornalísticos investigar como é que Rendeiro, com os bens congelados, vive com um padrão de vida que pressupõe gastos superiores a muitas dezenas de milhares de euros mensais. Mas mal Rendeiro abre a boca, depois de magicar um plano de recuperação do BPP em que ninguém acredita, tem direito a primeiras páginas de jornais e tempo de antena na televisão como o PCP não tem. Alguém sabe, alguém quererá realmente saber quanto dinheiro têm os Rendeiros e os Loureiros nas contas bancárias, as suas e às que têm acesso, dentro e fora dos paraísos fiscais?
Curioso é o caso da Fundação Ellipse. Uma trapalhada de um fundo de investimento em arte que rentabilizaria os investimentos feitos a curto prazo e que passou a ter um horizonte de longo prazo, assumindo Rendeiro o papel de investidor principal ao lado do BPP, onde ele era o que se sabe. Rendeiro, numa entrevista à Artecapital procura explicar essa mutação por um acesso de súbito e entranhado amor à arte. Atreve-se mesmo a dizer que «certas coisas que hoje gosto e aprecio imenso, se ca­lhar, há cinco anos não apre­ciava ou até não com­pre­endia de todo. Essa aber­tura do gosto à mu­dança é, penso, um dos lados mais fas­ci­nantes deste mundo do co­lec­ci­o­nismo e da arte con­tem­po­rânea.» Apesar da formulação mais cuidada que a de Berardo, o que sobressai de toda a entrevista é que o personagem deve julgar que Caravaggio, Courbet ou Dix são jogadores de futebol, que a história de arte começou em meados do séc. XX nos Estados Unidos. Daí o uso a torto e a direito de palavras inglesas, deve estar convencido que isso é sinal de civilização, a começar pelo nome El­lipse Foun­da­tion, em exposição num Art Center, ser um player no mundo da arte contemporânea. etc. Percorrendo a colecção na Internet a mediocridade de quase toda a colecção, mesmo se olhada unicamente como investimento, deve ter feito fugir a sete pés investidores mais atentos à bolsa das artes, apesar dos truques so­ci­a­lites que deram visibilidade à abertura do Art Center, no dia do aniversário deRendeiro, com cock­tails de apresentação em Madrid, Nova Iorque e Basileia, festejos de variada pirotecnia em Portugal que lhe valeram um lugar na Art Re­view entre as cem personalidades mais influentes na arte actual. Nada que espante neste mundo medíocre de mundanidades em que a arte, cada vez mais encarada como um objecto de luxo e moda, se afoga.

Uns ar­tistas

A passagem do curto prazo para o longo prazo é um truque, mais um, a juntar ao da selecção dos curadores da fundação. Pedro Lapa, director do Museu do Chiado que comprava para os dois lados os mesmos artistas e distribuía selos de garantia institucional organizando exposições desses mesmos artistas no museu que dirige. Alexandre Melo, assessor para a cultura do 1.º ministro, ex-conselheiro de Berardo, construtor de reputações artísticas e manipulador da história de arte (1), Manuel Gonzalez ligado à colecção do banco JP Morgan Chase. Um trio para garantir cotações, não qualquer relevância artística e estética. Promiscuidades evidentes, faladas no estrangeiro por cá nem por isso. Normal num país dos ananases, como dizia o outro, sempre é um fruto mais luxuoso que as bananas. Não estamos na América do Sul, estamos na União Europeia!
O que Rendeiro afirma varia em função do interlocutor e do órgão da comunicação social. Na Ar­te­ca­pital «co­lecção, co­lo­cada ao ser­viço da co­mu­ni­dade, para ser vista, isso, em si mesmo, é uma ló­gica de ser­viço pú­blico». No Isto é Di­nheiro «o pro­duto fi­nan­ceiro anun­ciado é se­me­lhante a um fundo de in­ves­ti­mento in­ter­na­ci­onal. Os in­ves­ti­dores serão co­tistas da El­lipse Foun­da­tion. (…)será pre­ciso es­quecer o di­nheiro du­rante um pe­ríodo que pode va­riar entre os sete e os nove anos (…) No longo prazo, os ga­nhos são atra­entes». A paixão pela arte é um negócio, a paixão pelo negócio é uma arte. Entre as duas venha o diabo e escolha. Este não é o universo da arte é o universo dos futuros e derivados bolsistas, um dos pilares da crise económica.
No afundamento do BPP a Fundação Ellipse reaparece na comunicação social. Começou por se dizer que poderia salvar o BPP, sem ser piada dos Gatos Fe­do­rentos ou dos Con­tem­po­râ­neos! Agora, quando Rendeiro é constituído arguido, volta a falar-se nas oitocentas e cinquenta obras de arte e no seu eventual valor, embora pareça não se saber ao certo quanto o BPP investiu. Devia-se saber quanto de facto se gastou a comprar aquele acervo, quantas são as obras compradas e para quem, quanto é que valem hoje. Sempre se ficaria mais próximo da realidade limpa de especulações estéticas, dotadas de grande maleabilidade e facilmente vítimas da vigarice intelectual, crime não previsto no Código Penal. Calavam-se, pelo menos temporariamente, esses figurões, que gravitam no universo das artes e fundações, esperando um novo tempo em que se afundem no pântano em que transformaram as artes.

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(1) Leia-se o seu úl­timo livro edi­tado, não des­me­rece dos an­te­ri­ores, Arte e Ar­tistas em Por­tugal/​Art and Ar­tists in Por­tugal, en­co­menda do Ins­ti­tuto Ca­mões para pro­fusa dis­tri­buição na opor­tu­ni­dade da úl­tima pre­si­dência por­tu­guesa na UE


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